Mais uma tarde de Outono, daquelas em que o vento bate na janela socando-a com todas as forças de uma tempestade de Novembro, os carros na chuva lá fora, chuva e carros de dimensões magnificas. E eu por dentro com escritório como jardim cinzento, encharcado de água e cheiros a terras de um qualquer parque Inglês. Eu sentado à secretária, uma garrafa de água na mão, a olhar para os livros – por eles −, para janela, para o que se conseguia ver além dela, tudo sem tremer, sem me mexer da cadeira giratória. Os livros, por mais que tentasse não os ouvir, desafiavam-me a produzir mais um elemento para a biblioteca, e quem sabe para a dos outros. Em surdina murmuravam: “Só mais um livro João, é hoje que podes recomeçar a reprodução em papel”, e eu nada, a olhar para os gatos a dormir com as caudas arrumadas. Estava habitado de um pânico crescente, uma dor profundamente incomensurável como sempre que me encontrava frente a frente com a folha em branco. Acreditava e ainda acredito que esta situação é de uma de injustiça atroz, uma violência que corrói as vísceras do escrevinhador, uma batalha sangrenta onde caem no campo de batalha soldados desconhecidos, párias de vidas, homens e mulheres incógnitos com sangue nas mãos. Estava ou era − é sempre a mesma coisa − perdido comigo, um dos “Exploradores do Abismo”, de Vila-Matas, um escritor frustrado, vencido pelo medo e salvo às vezes pela parafernália de medicamentos que engolia sem medo para dentro do meu, desde sempre, pequeno estômago.
“As tardes são enormes coisas sem nada lá dentro”. Afaguei o cabelo com uma mão que ansiava por um cigarro há dez minutos. Levantei-me e comecei a procurar, em todos os bolsos do meu casaco já velho, o tabaco; encontrei-o e iniciei o ritual costumeiro da demanda do lume. O isqueiro em cima da mesa da cozinha, um exemplar que roçava o foleiro, acendi o vício e mais uma vez iniciei o sonho.
Olhei o tempo com um medo terrível de me esquecer de algum pormenor da minha vida de menino grande. A chuva fazia o seu trabalho, o vento ajudava, as janelas tremiam, “ João vem jantar”, e eu agarrado a elas com medo que as coitadas se transformassem em vidros. “ João anda comer” e eu sem fome, agarrado ao cigarro e à água com gás, a tentar mais uma vez equilibrar a ideia, a janela, e a água. O cigarro parado no cinzeiro, a canibalizar-se de dentro para fora “ já vou, só um minuto”, gritava eu a tentar esquecer-me da comida.
O vento acalmou, um silêncio nasceu, o vento, que é desde menino pequeno um grande amigo, adormeceu ao jantar.
Fumava e olhava para os livros; recordei sem querer as idas e vindas da escola pelo passeio do meu longínquo País do Sul. Todos os dias o mesmo passeio habitado de Sueste, o vento que o minava por dentro, que me ajudava a carregar e agarrar com muitos e saudáveis dentes o pirolito que sabia a mel: − o meu prémio pessoal por me ter “portado bem na escola”.
Recordei-me de alguns amigos da escola, de muitos não amigos, de nunca jogar no campo de futebol, só entre as oliveiras que faziam de baliza. O pacote de leite como bola, no intervalo de meia hora, às dez da manhã.
Nunca fui um grande jogador de futebol, nem um grande desportista, e assim eram as oliveiras goleadas pelos meus pequenos chutos.
A Teresa a gritar, os gatos acordam e esticam as pernas “ Estou a ir”, agarro-me à mesa e levanto-me com vontade de escrever. Fui para a sala, não trocamos palavras, sentei-me à sua frente, começamos a comer os escalopes. “Queres batatas fritas?”, e eu com os olhos de cão doente, disse que não, ou dei-o a entender, para desgosto e irritação da Teresa. “Não andas a comer nada, estás cada vez mais magro…”, não respondi, olhei para a carne com vontade de fugir. “ Ando sem fome, não sei o que é que se passa. Sei que não ando a ser uma grande companhia, e… Desculpa lá”, a mãos dela atravessaram a mesa, acariciaram-me a face ossuda, repetidamente sussurrou que tudo iria passar. Vieram os cafés, olhámos um para o outro sem pressa. Descansámos um no outro, pelo outro, o olhar. Beijámo-nos com bocas Sical, demoradamente, sem correrias. Fomos deitar.
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