sexta-feira, 18 de junho de 2010

Levantado do chão




Teremos de ir por partes, temos de as dividir, e subdividir, baralhar e voltar a dar.

Parte um:

Temos um cenário de livraria, janelas do chão ao tecto. Expostos ficam livros, clientes e livreiros. Um cenário red light zone, transposto em palco livreiro, com livreiros não holandeses ao serviço dos gostos da cliente culta.
Neste espaço temos cadeiras com mesas onde se sentam estudantes; não compradores; leitores; explicadores, e poucas putas. As putas andam a trabalhar, na arrumação do sitio, a tentativa do mimetismo inerte à profissão a corroer-lhes por dentro, o cigarro que falta, níveis de nicotina a baixar.

Parte dois, acção:

O cabelo a descair nos ombros da cliente “ Tem O Ano da Morte, do Saramago?”, uma fuga no olhar, pigarreia-se “ Estou à espera, foram devolvidos…sabe as coisas funcionam assim”, a clientela não sabe, não quer saber, não tem de saber como as coisas funcionam. Instala-se o silêncio. Entretanto, nos interstícios do momento suspenso, o livreiro de serviço realiza uma fuga no olhar, pensa no cigarro que falta, nas férias no Algarve, nos filhos à beira mar, nos mestre-de-obras que são à canícula “ ponham os bonés”, nos castelos e conventos derrubados pela espuma da maré “ meninos mais para cima, a maré está a encher”, no mais novo a comer areia, nas bolas de berlim “ não tem noutra loja?”, e o livreiro que se moveu duzentos e noventa e três quilómetros, enquanto decorria o silêncio, entrou na A2, saiu na A2, pagou 18 eur, chegou a Lisboa, arrumou o carro, tomou banho, meteu-se no comboio “senhores passageiros, o comboio proveniente de Coina, e com destino a Roma Areeiro, vai entrar na linha dois, pedimos o favor de se afastarem da linha de embarque”, apanhou o metro “ merda ainda não comprei o passe”, e saiu no Saldanha, dá uma volta sobre si mesmo − uma manobra de diversão −, pensa no cigarro “ só um minuto que vou já verificar”, a cliente, rapariga já entrada nos trintas, ar artístico quanto baste para o nosso fumador de engalanar, que entra no balcão “ deixem-me só ver se temos O Ano da Morte de Ricardo Reis na Gulbenkian, ou no Oriente”, o computador teima em não andar, o Algarve a morar na sua cabeça – do nosso trabalhador, claro está −, surge o quadro no monitor, nomes de lojas abreviadas − uma parte −, quantidades existentes de livros por loja – duas partes −, quantidades encomendadas – três partes −, “ Não, não temos em nenhuma loja, mas está encomendado”, ela não agradece, vira as costas tipo Roriz, e o livreiro “ Vou fumar um cigarro”, sai do balcão, desce as escadas, abre as portas para a rua e pespega um Camel com areia nos lábios, e pensa nas alegrias do CDS e PSD, enquanto uma lágrima lhe escorre na face esquerda, ao pensar no levantado do chão, que mora no seu espectro esquerdino.

sábado, 5 de junho de 2010

Está guardado na garagem


Trata-se de um quadro com uma qualidade tal, que é por cima da máquina de lavar o seu lugar.

sexta-feira, 4 de junho de 2010

Let´s go Europe



Stadiongasse, Viena, foi grande a discussão, verborreia da feia “ Acabou Matilde, tou farto desta merda”, eu de lado, mais precisamente diagonal em relação ao conflito “Não vás Luís, não tens mapa”. Ela só gritos, eu calado, farto “ Ele vai-se perder Misantropo, não tem mapa”, bufo para dentro, e, digo para fora um “ Tem calma. Ele não se perde, e já se acalma…pondera e tal”. Ela nada, não me liga patavina, começa a correr atrás do seu amado, eu sozinho com o livro, olho para as minhas mãos “Let´s go europe”, vou.
Reservo um lugar no Expresso do Oriente – à pois é. Sigo para Paris às 18h e 30 m, sozinho, sem dizer nada a ninguém faço-me à Europa, com a policia austríaca atrás de mim. O casalinho entretanto resolveu a contenda e entrou em “pânico”, contactou as autoridades " perdemos um amigo", a bófia austríaca igual a nossa conterrânea, ri. Eu, entretanto com a Europa a nascer-me pelas mãos, num comboio apinhado de gente do outro lado da cortina, aquela que tinha ferro.

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Na grua a pensar em Proust.


Agarra na grua e levanta um edifício, pensa no ordenado, evita a tontura. Desce da grua, requer habilidade, tem-na e sabe-o. Pega na mochila, tira a sandocha e o Sumol, garganta aberta, borbulhas, nectarina, o cigarro em cima da mão, cigarro não, a mortalha, e requer habilidade, tem-na. É um habilis desvalioso, uma espécie descartável no plano urbanístico triunfante.
Horas de subir a grua, requer vontade, a jorna no osso occipital, conta até 17, a vontade em números primos, tem-na. Roda o monstro amarelo, o rio lá ao fundo, a chuva a bater no dito, faz frio, intempérie nas obras.
Almoço.
Abre a mochila, requer saber, tem-no. Nascem nas suas mãos feijão com arroz, o mesmo de ontem, o de amanhã. Arrota, tem vontade. Bebe água. Pensa no ordenado, precisa de vontade, tem-na.
Turno da tarde, fecha a sacola, sobe o guindaste, e lembra-se como proust pode mudar a sua vida.