sexta-feira, 2 de julho de 2010

Supostamente invisível

Hoje comei a desaparecer. Assim, sem mais nem menos, comecei a apagar-me “conversa, é o que é”: primeiro as pontas dos dedos atravessaram o frio glaciar do copo, vidro, eu vidro, eu matéria estranha “ lá estás tu outra vez com as tuas coisas”, eu desconhecido, eu sumo de laranja, eu “ pára já com isso” a brincar com o gás; depois foram as mãos, os braços a entrarem pela mesa, eu já só tronco, costelas encostadas à mesa da cozinha “ mas estavas bêbado, ou quê?”, e comecei a descansar, enquanto olhava sem atenção o Brasil a perder o jogo. O telefone tocou, retocou, ergui-me devagar, sem braços, perscrutei o espaço vazio inclinado numa pose ridícula na bancada da cozinha, a língua fora da boca − sem tocar nos dentes −, a tentar a tecla de atender, lá foi, consegui “ viste o jogo?”, era a J., “ vi”, não consegui dizer-lhe que não tinha membros superiores, seria muito duro para ela “ é pá, isso já não chega?”, eu olho para ti “ se calhar tens razão Amélie, isto não aconteceu. Se calhar não era sumo de laranja”, abanas as tuas orelhas, o espaço que existe entre o seu suposto lugar −já não existiam quando chegas-te à nossa casa pela primeira vez −, lambes-me o espaço que ficou onde estavam as mãos, abanas três vezes a cauda, e deitas-te no sofá, no sítio que era teu quando ainda eras viva. Tudo antes, muito antes, da laranja mecânica pensar na vitória sobre o Brasil, e eu me perder em copos de sumo.

Sem comentários: