terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Dandy a dançar.


Chegou o instante. É agora, o theama que não posso deixar de ver – sempre me deslumbrei com pleonasmos −, “ver não que é feio, olhar, isso sim”, captar na minha mais interna e visceral máquina fotográfica leica, que guardo com todas as minhas recordações no sótão occipital, em frente, de frente para o restante e ordinário.
Estou parado, contido na noite a tentar seguir os pressupostos de Isócrates, a habilidade ou “capacidade do discurso”. É agora, chegou a “Hora” de mais umas folhas coloridas, sarapintadas a preto – nunca consegui escrever de outra cor – “não se escreve a preto, quantas vezes terei de lhe repetir? É a azul como todos os seus colegas”, e eu nada. Eu nada.
Eu nada, sempre em nada, absoluto no absorto, quieto no preto, sossegado no escuro da cor, “sou um a preto e branco”, ela grita, eu ajeito a gravata e guardo-me no silêncio, profundo e duro, como aquela nuvem, a que teima em passar todos os dias na minha vida. É o momento de abrir a Obra, mas chove tanto lá fora, e cá dentro... frio.
Um dia pela manhã chegaste de fininho, e disseste-me que tinha de abrir o sótão, de o pôr ao sol, receber alguma luz, eu sendo polite “ amanhã sem falta, minha cara”, mas nada, e eu nada. Sentei-me novamente, li a Divina Comédia, no exílio como Dante, confrontado como o grande poeta com as consequências da viagem, do previsível residente, e com muito medo do presente. Fechei a porta do sótão, fui ligar a aparelhagem para ver se me animava, mimava ao som dos Bauhaus, o que mais uma vez, previsivelmente não me animou. Fui-me deitar, nem retirei a gravata, dandy até ao deitar.
No outro dia tentei-me levantar, mas durante a noite tinha andado em passeios rotativos e constantes pela Roma antiga, nas zonas do Foro e Velabro, onde fui atacado pela deusa Febre, e nem a subida ao altar do Palatino me salvou. Fiquei a olhar para o edredão o dia todo, com a escrita pendente, a Obra a marinar em “banhomaria”, no frigorifico ao lado dos iogurtes, em frente, de frente para porta fechada. Sai da cama à noite, com o enredo da escrita na febre “ amanhã sem falta, minha cara”.
Dormi mal nessa noite, tinha sede de medo de estar parado, mas estava bem, apenas desperto, com o cigarro a iluminar a minha quietude vivencial, uma subespécie de espécie de gostar da vida adiada.
Hoje é o dia, chegou a Hora, “Amanhã sem falta, minha cara”. Olhas-me de lado, visitas-me o colarinho, puxas-me de encontro ao colo. Chegou o instante, é a Hora, sussurras-me a sorrir “Vamos dançar?”, “Agora sem falta, minha cara”, e dança-mos a cores, muitas e macias, sem preto, pela noite fora. È a Obra.




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