segunda-feira, 31 de maio de 2010

" Vou ser escritor"

Às vezes baralho-me na sala, gasto as solas dos sapatos que se perdem nos olhares dos livros; que me perscrutam silenciosamente, aparentemente, oferecendo a razão da dor de cabeça. A minha eterna dor. Por vezes ando descalço no cubículo recheado de papelada, a poupar a carteira, ou os sapatos − é a mesma coisa, tudo a mesma coisa. E só Deus sabe como odeio andar descalço, nu, com as letras por dentro das folhas a me espiarem, como se eu fosse um deus voyeur.
“ Quero muito”, e o piano toca, “ quero tanto”, e sou um dissector de material alheio, uma prepotência fina, silenciosa na cidade. “E gostava tanto”, digo de mim para mim sentado. Acendo um Camelo, olho para os dedos magros, espero notícias.
Ela entra.
“ O que é tens estado a fazer?”, e eu a tentar ser uma força criativa, a responder-lhe “nada”. “ Estou a pensar ser escritor”, ponto. Há um vazio na dialogação, um mergulho no vazio.
Aqui se o caro leitor me permitir, terei de ilustrar; pintar o cenário em que decorre este nosso encontro.
O quarto está repleto de estantes preenchidas de livros. Móveis Ikea nas quatro paredes, uma será mestra – a parede. O nosso protagonista − que por acaso, vos fala − está de pé, a olhar para ela. Ela, a sua cadela morta há dois anos, o que não a impede de falar com ele – eu − , não o larga, e ele agradece. E eu agradeço.
Apesar de ela estar no céu, não Céu, tem o hábito da visita, e eu, que sempre me dei bem com costumes, fico à conversa.
“ Escritor, dizes tu. És sempre a mesma coisa.”, encosto-me a ela, faço-lhe festas no focinho, e dou-lhe um beijo nos olhos. “ Olha Amélie, a cama chama-me, vou um bocadinho à Montanha e amanhã… explico-te, falamos”. Ela senta-se, abana a cauda duas vezes, e lambe-me as tatuagens dos braços: dizemos em uníssono um “ Até amanhã”, fecho a porta.
Subo a escada “ Vou ser escritor”, e vou lançando favas na noite. Estou descalço, e sem olhar para trás semeio “ Com estas favas eu me resgato, a mim e aos meus”, e os  Lémures vão resgastando os grãos. Entro na casa de banho, purifico as mãos. Bato no bronze da torneira, e “ Um dia vou ser escritor”.


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