sexta-feira, 7 de maio de 2010

A estória continua

O telefone acordou-me às sete da manhã, assustei-me. Fui em direcção ao telemóvel a correr, atendi com receio da voz do outro lado. “ Bom dia” disse alguém, era um homem “ bons dias”, respondi, “estou a falar com o senhor João?”, a voz parecia mansa, amigável. Transportei o telefone comigo para a casa de banho, acendi um cigarro, “ sim sou o próprio. Em que lhe posso ser útil?”, fitei o espelho, esperei a hipotética transfiguração da minha cara, liguei a torneira. “ Olhe, daqui fala do hospital do Sul…”, comecei a tremer, o cigarro caiu no lavatório, agarrei-me à sanita “ as notícias não são as melhores, o seu pai acabou de falecer, os meus pêsames”. O telefone caiu, a casa de banho desaparece momentaneamente. Vem o pânico. Agarrei-me ao tronco ossudo, toco nas costelas, tento me reconfortar, nada acontece.
Acordo mais tarde, a Teresa esbofeteia-me, baptiza-me novamente, bidé como pia baptismal “ João acorda. Vá lá, não me faças isto, ACORDA”, eu a tentar levantar-me, agarrado às suas costas como bengala. Choro compulsivamente “ e agora? E agora Teresa, que será de mim?”. Levantámo-nos os dois, e ela a retirar os cabelos dos olhos -os meus-, olha-me com a sua firmeza habitual, repete-me incessantemente um “ Calma”. Perde-me por instantes nos meus soluços “conta-me tudo, com calma.”, sorri, perscruta-me os braços, acende-me um cigarro enquanto ajeita o cabelo, e em surdina “toma amor”. Agarro-a como se fosse a minha casa “telefona para o meu trabalho… telefona para o teu, não podemos ir”, não a estava a engrolar, ela sabia-o.
A Teresa tratou de tudo, como era apanágio nas nossas vidas. Tentou falar com a minha mãe, foi difícil e doloroso para a Teresa, jogo táctil realizado telefonicamente, subespécie de diálogo, lágrimas que eu não queria ouvir. Lavei a cara, pensei no meu pai a andar de bicicleta, deslindava-o entre os autocolantes da janela do meu quarto, esperava sem ele saber “faz bem chorar João, chora à vontade”. Gostava de o olhar, nunca lho disse, eram garfos que nos atravessavam as gargantas no momento dos supostos carinhos verbais “ calma amor, abraça-te a mim “, lavava a cara, ele sempre de bicicleta, vinha dos lados da Câmara “gostava tanto dele Teresa”.
Fui-me deitar com os seus olhos fugidios “dorme um bocadinho, vai-te fazer bem”.
Um ataque cardíaco, foi o que o matou, estava no escritório. “Estava sozinho?”, perguntei já mais calmo − o xanax xr resultava muito bem.

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