segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Laura

Ela vivia no momento em que ele se afastou. Foi num Domingo de manhã “ não fujas de mim”, não respondeu, de mala às costas partiu com um cigarro na boca. Abandonou-a sem nada dizer; um gesto; aceno; nada. “ Não me deixes”, lágrimas a correrem-lhe pela camisa de dormir, olhos inchados, pretos, duas enormes bochechas orbitais repletas de dor; foi o fim para Laura. Entregou-se à bebida, aos amores fáceis, lentamente se abandonou. Eram as camas improvisadas que lhe secavam os salgados olhos mortiços, momentos em que se sentia amada “cada vez és melhor”, e ela deliciada, vinho nos lábios gretados “ és tão bom para mim”.
A Laura envelheceu sozinha, agradecendo à aldeia pelo amor que lhe devotava. Morreu como a “Laurinha boa foda”, sem visitas, lágrimas e velório. O único presente no enterro, foi um homem de cigarro na boca, mala às costas, e um adeus nas mãos “eu amava-te demasiadamente para ficar”. As cordas desceram, Laura foi enterrada outra vez, agora para sempre

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Variações sobre a cidade

Os meninos jogavam à bola no adro da Igreja, um campo de futebol religioso, com uma baliza, só uma. Era enorme, de madeira trabalhada com postes e barra góticos – eles não sabiam nada destas coisas. A cada golo, um barulho magnânimo, transcendente, “daqui para fora, já” e a rapaziada aos pulos, erguendo os braços ao ar, a Deus “ não os quero aqui”, não era Ele que os escorraçava, mas sim o seu representante, o bondoso senhor prior.
Durante meses a fio o adro era o lar da pequenada “ gira daqui para fora”, até que um dia, perante tais ameaças divinas, abandonaram o campo de futebol religioso com a sua bola de cate chumbo. Eles e as camisolas de malha − tricotadas pelas mães e avós −, desceram as escadas do promontório sagrado da cidade, sem olhar para trás, sem cruzarem olhares entre eles, ressentidos, envergonhados. Afastaram-se da Igreja, até hoje.

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Novembro

Em Novembro, as noites vão caindo mais cedo em cima de nós. O céu começa a partir-se e a lavar as ruas; os transeuntes que teimam em não usar sombrinha; assim como os cães dos vizinhos às ombreiras das portas.
Em Novembro iniciamos a leitura das coisas tristes, ficamos deprimidamente felizes, nostálgicos, com castanhas a arder nas mãos. Mãos paulatinamente gretadas, o sangue a escorrer até às unhas, que chupa-mos sem medo, mas com dó. Nada nos mantêm aquecidos em Novembro, nem sequer aquela manhã com sol, com café a realizar desenhos no ar, afluindo à dança produzida pelo cigarro em espirais de beleza tóxica.
Em Novembro, todos somos mais e mais sós, solitários ao frio − como no conto de Maupassant −, tendo como certeza a impossibilidade de companhia efectiva, concreta, na imensidão de gotas que nos vão encharcando o claustro.
Novembro, nome triste.
Novembro cor de maçã podre.
Novembro nome de estação de caminho de ferro, onde está alguém, com folhas nos dedos compridos, enquanto espera o último comboio para aquele lugar, outro lugar. É sempre outra a estação que espera alguém. A outra estação que certamente estará vazia, sem ninguém.
Em Novembro nasce Camus, numa quinta da antiga aldeola de Saint-Paul, perto de Mondovi, a sul de Annaba. Nasce após uma viagem de carroça, o que não é de todo um bom prenúncio. Nove meses bastam na sua vida para eclodir a Primeira Guerra Mundial. E depois está lá tudo no “Primeiro Homem”.
Novembro é mês de revisitar os mestres, tristes mestres.
Está quase a chegar o Entrudo, pode ser que tudo isto passe. Pode ser.

terça-feira, 17 de novembro de 2009

Variações sobre a cidade

Naquele tempo a cidade estava cheia de sociedades recreativas, com mulheres lá dentro, sentadas à espera de uma dança. Os maridos − que no bar da sociedade eram solteiros – bebiam, embebedavam-se uns com outros, todos eles sem mulheres ou filhos. Os homens brincavam aos meninos grandes, e os brinquedos eram minis geladas, chupetas nos beiços, com grandes bigodes por cima. Homens que levavam as suas “marias a dar uma voltinha”, “marias” em quietude nas suas cadeiras. Todas elas maquiadas, com roupas domingueiras, perscrutando o agrupamento musical, que tocava para uma pista de dança vazia. Mulheres que eram apenas “marias” de seus homens; mulheres com os seus filhos numa longa espera.
Os meninos pequenos brincavam uns com os outros, oferecendo às suas mães um ofício, que era o de olhar por eles. Meninos e mães eram a perfeita e única companhia no baile. Mães que nunca retiraram os seus filhos de dentro de si, vivendo um com o outro, pelo outro, dentro do outro. E os pequenos caiam um a um em cima do colo das mães, que lhes passavam as mãos pelo cabelo, pelo tronco, afagando-os como crias que eram.
A cidade de mães e filhos esquecidos, com homens solteiros a jogar à lerpa na mesa da vida dos outros, que afinal era dos seus.